No rasto matricial do conde D. Pedro de Caminha (III) – Dom Diego de Soutomaior, comendador na Ordem de Alcántara. Interessado propalador de uma nobreza de quatro costados

Sede conventual da Ordem de Alcántara (Alcántara)

A idade – rondaria os 65 anos – e o desgaste de duas décadas na vanguarda dos destinos da família, levariam a condessa velha de Caminha D. Teresa de Távora, em Fevereiro de 1506[1], a passar o testemunho ao filho D. Diego, que desde então e até 1543, será o pilar da casa de Soutomaior. O primogénito D. Álvaro fora morto numa rixa em Valladolid[2]; D. Fernando sucumbira em Santiago, no seguimento de uma curta estadia nas Índias ocidentais ao tempo de D. Cristóbal Colón[3]; D. Alfonso duelara ingloriamente a honra contra o “chevalier Bayard”, durante as guerras de Itália[4]. Todos morreram novos, entre os 25 e os 28 anos. Apenas D. Cristóbal ultrapassaria em pouco os 30 anos de idade, quando foi assassinado pelos “Tainos”, na ilha de San Juan (actualmente Puerto Rico), para onde partira em 1509 acompanhando D. Diego Colón[5]. Com excepção de D. Álvaro – pai de um varão e três raparigas, todos menores, que ficaram a cargo da mãe, D. Inés de Monroy -, nenhum outro deixou geração conhecida, legítima ou ilegítima. D. Constança a mais nova das duas irmãs, casada com o alcaide da fortaleza de Monte de Boi (Baiona), morrera também com pouco mais de 25 anos, ao que parece sem geração[6]. D. Maior pelo contrário, lograra descendência tanto do primeiro casamento com o porteiro-mor do rei D. João II[7] – que a deixara viúva nos primeiros anos do século XVI -, como do segundo, com Diego Reynoso[8]. Será mesmo este cunhado quem acudirá a D. Diego, com um empréstimo de 250 000 maravedis para uma viagem à Flandres, denotando uma estreita ligação entre aqueles irmãos, bem diferente das tensões que existiam com a cunhada D. Inés de Monroy, contra quem se juntara a família na disputa pela titularidade da casa.

Esta proximidade é relevante, atendendo ao facto de que alguns dos ramos descendentes de D. Maior e Diego Reynoso, ostentaram as armas e o apelido de Zúñiga, o que poderia indiciar positivamente a genealogia materna do conde de Caminha, fosse ela conhecida por tradição, informada por Pedro Madruga, ou até arranjada por D. Diego de Soutomaior. Note-se que para o seu ingresso na Ordem de Alcántara em 1510, D. Diego foi inevitavelmente obrigado a provar “(…) ser fidalgo de sangue a foro de España (…), com escudo de armas, de creditação fidedigna, também pelas quatro linhas, e ser descendente de casa solar, tanto ele, como seu pai, mãe e avós, sem que nenhum deles tivesse praticado ofícios vis, mecânicos ou industriais”, conforme atesta Fernando Gonzalez-Doria, tratando da Ordem Militar de Alcántara, no seu Diccionario Heráldico y Nobiliario de los Reinos de España.[9] E neste particular, duas hipóteses teria: ou sua avó paterna era nobre e o caso se resolvia com facilidade, ou não o sendo haveria que ultrapassar o problema…

Zúñiga e Reynoso (A Guarda-Tui)
Zúñiga e Reynoso (A Guarda-Tui)

Acontece que o próprio Diego Reynoso era um Zúñiga! Chamava-se a mãe Leonor de Zúñiga y Avellaneda e casara com o senhor de Autillo de Campos, Juan de Reynoso y Herrera[10]. Prova-o uma pedra de armas existente no mosteiro beneditino d’A Guarda (Tui) – fundado pelos netos do casal Diego-Maior – exibindo um escudo partido de Zúñiga e Reynoso[11]

Ozores, Soutomaior, Zúñiga e Reynoso (A Guarda-Tui)
Ozores, Soutomaior, Zúñiga e Reynoso (A Guarda-Tui)

Desses netos, todos filhos de D. Ana Páez de Soutomaior, e do senhor de Teanes (Salvaterra de Miño), Vasco Ozores, cumpre destacar o sucessor, García Ozores de Soutomaior – pelo facto de ter casado em 1540 com D. Aldonza, filha natural daquele D. Diego de Soutomaior[12] -, e D. Maria Ozores de Soutomaior – casada com o senhor de Goián e da torre d’A Guarda (Tui), Gomes Correa, progenitores da casa de Priegue, cuja expressão máxima se ergue ainda hoje, no monumental exemplo do Pazo de La Pastora, em Vigo. É precisamente nos apelidos e brasões deste ramo que mais exemplos se encontram da composição “Zúñiga / Soutomaior”.

Sequeiros, Soutomaior, Zúñiga e Silva. Sobre o todo, Ozores.
Sequeiros, Soutomaior, Zúñiga e Silva. Sobre o todo, Ozores.
(Pazo de La Pastora – Vigo)

Recebido o Hábito de Alcántara, D. Diego de Soutomaior passou a residir no convento-sede da Ordem, onde em 1514 assina uma escritura de doação em favor do cunhado Reynoso e da irmã D. Maior[13]. Em Dezembro de 1523[14], Carlos V nomeou-o comendador da Batundeira, cuja jurisdição se situava na região de Ourense, na Galiza, mas as rendas em Badajoz. Nesse meio tempo viajou à Flandres e eventualmente às Índias ocidentais, neste último caso para reaver os bens deixados por D. Cristóbal de Soutomaior na ilha de San Juan[15]. No ano seguinte foi testemunha num pedido de D. Diego Colón para resgatar o testamento do primeiro Almirante das Índias, visando questões de herança[16]. Simultaneamente procurava concertar as nefastas consequências do acto matricida do sobrinho D. Pedro, insistindo junto de Carlos V para que os bens da casa – entretanto confiscados – fossem restituídos, conseguindo-o finalmente em Agosto de 1525[17]. Entre 1526 e 1531 governou o Partido de la Serena (Badajoz), e desde então sucedeu a D. Martin Rol[18] no patronato do hospital de Santa Elena – que aquele fundara – e na comenda do castelo de Almorchón e vila de Cabeza del Buey (Badajoz)[19].

A meia distância na estrada que ligava Puebla de Alcocer a Belalcázar, ficava Cabeza del Buey. Constituíam aquelas vilas, as jurisdições fundamentais do condado que desde 1518 tinha como titulares D. Francisco de Sotomayor y Portugal e sua mulher D. Teresa de Zúñiga Guzmán y Manrique. O comendador de Almorchón terá sido visita frequente, no palácio de Belalcázar, durante largos anos. Por sua instância ali residiram a tempos, alguns dos seus familiares próximos, como o “matricida” D. Pedro de Soutomaior, ou a filha deste, D. Maria, na qual nomeia, em 1543, a fundação do morgadio de Soutomaior, por escritura feita precisamente em Belalcázar[20]. Talvez o acto decorresse na sala mourisca (“Cámara Morisca”) – feita ao tempo de D. Elvira de Zúñiga, bisavó do conde -, em cujos estuques mudéjares sobressaíam escudos de armas de contornos semelhantes aos da entrada do castelo galego da linhagem. Mero acaso, coincidência na época de fabrico, ou eventual inspiração de um no outro?

Castelo de Soutomaior
Castelo de Soutomaior
Castelo de Belalcázar
Castelo de Belalcázar

Em 1533 a condessa D. Teresa tornou-se herdeira do tio, D. Álvaro de Zúñiga y Guzmán, duque de Béjar – protector de Francesillo de Zúñiga, o célebre bufão de Carlos V que fez mofa de certa inconfidência cortesã, afirmando sinuosamente que “(…) D. Diego de Soutomaior parecia hijo bastardo de Colón el almirante de Indias (…)”[21]. Aproximavam os estados de Béjar e Miranda del Castañar, não só a vizinhança geográfica, como também a genealogia comum dos Zúñiga. A vaga memória de uma tia-avó do conde de Miranda que casara e vivera na Galiza[22], aliada à história próxima dos Soutomaior galegos com a casa de Santa Marta, de que aquela foi senhora, poderá ter influenciado – natural ou intencionalmente – a já referida afirmação de D. Diego de Soutomaior[23].

Dona Maria Vidal – a hipótese do século XVII

Se ao tempo do comendador de Almorchón (primeiro terço do século XVI), nem ele nem o cronista Vasco da Ponte conheciam com rigor a verdade dos factos, o que dizer da divergente opinião de frei Felipe de la Gándara, cronista geral da Galiza, autor de “Armas i Triunfos Hechos Heroicos de los hijos de Galicia? Nessa obra magna datada de 1662, tratando da genealogia dos Soutomaior, o padre agostinho questionou implicitamente a existência de D. Constanza de Zúñiga, escrevendo que D. Pedro Álvares, conde de Caminha, fora “(…) un hijo natural de Hernando Yañez de Sotomaior, avido en Doña Maria Vidal, hija de Juan Vidal de Santiago (…)”[24]. E nesse autêntico tratado de genealogia galega com quase setecentas páginas, só menciona um outro “Vidal de Santiago”, de nome Pedro – já referenciado no “Livro de Linhagens do Conde D. Pedro” -, que viveu em finais do século XIII e foi o progenitor dos Moscoso da casa de Altamira![25] Não citando a fonte, desconhece-se onde o cronista buscou tal informação; assim como se não conhece qualquer outro pormenor acerca de Juan Vidal.

No entanto e por estranho que pareça, Felipe de la Gándara pode ter sido o primeiro a insinuar – conscientemente ou não -, a origem materna de Pedro Madruga, entre as famílias das “Rias Baixas” que retiravam do mar o sustento, comerciando na rota levantina. Baseando-se em Elisa Ferreira Priegue, investigadora especializada no comércio marítimo medieval na Galiza, José Armas Castro publicou em “Pontevedra en los siglos XII a XV”, um quadro com movimentos documentados de barcos pontevedreses, entre a Galiza e o Mediterrâneo. Encabeça a listagem diacrónica um Domingo Vidal, que entre 1393 e 1397 era patrão da nau “Santiago”, viajando com frequência para Valencia. Alguns anos mais tarde, entre 1410 e 1414, é um Pedro Vidal que predomina na documentação, desaparecendo em seguida a família, em detrimento dos Falcón e Cruu, dominantes nas décadas de vinte e trinta[26].

Pode assim conjecturar-se que – a ter existido -, Juan Vidal pudesse ter pertencido a esta família, activa em Pontevedra ou Santiago na transição dos séculos XIV-XV, o que também sustenta uma Maria Vidal, nascida à volta de 1415, como hipotética mãe de Pedro Madruga.


[1] Data de 6 de Fevereiro de 1506 o último documento que se conhece, assinado presencialmente por D. Teresa de Távora, em Salamanca, fazendo prova dos filhos que teve com o conde de Caminha, no âmbito do processo de cedência e transmissão de bens na pessoa de seu filho D. Diego de Soutomaior.

[2] Ponte, V. (2008), pp. 150.

[3] Requejo, Á. C. (24 de Novembro de 2011). Carta de Teresa de Távora a Juana la Loca. Obtido em 6 de Agosto de 2013, de Colonianos: http://www.cristobal-colon.org/carta-de-teresa-de-tavora-a-juana-la-loca-por-angel-de-requejo/

[4] Identificação de D. Alfonso de Soutomaior: https://fr.wikipedia.org/wiki/Alonzo_de_Soto_Mayor; Reconto do duelo e morte de D. Alfonso de Soutomaior: http://www.gutenberg.org/files/28455/28455-h/28455-h.htm#page145

[5] Cota González, R. (2008). Cristóbal Colón, Pontevedra, Caminha. Pontevedra, Galicia: PMMNexc, pp. 63-75. Texto integral em http://www.cristobal-colon.org/biografia-de-cristobal-de-sotomayor/

[6] Na escritura de cedência de bens, feita por D. Constança a seu irmão D. Fernando de Soutomaior, com data de 1495, é expressamente referido “(…) Garci Méndez de Sotomayor, alcaide de la dicha fortaleza de Monte de Boy por el rey y la reina (…)”, como seu marido. Em 1506 (vidé, No rasto matricial do conde D. Pedro de Caminha (II), nota 28), D. Teresa de Távora indica aquela filha como já falecida. Muitas genealogias fazem-na casada apenas, ou também, com Diego Sarmiento de Soutomaior, sr. de Vale de Achas e Petán, o que é erro, uma vez que Diego Sarmiento casou com Maria Xuárez da Ponte.

[7] São Payo, L. M. (1999). Sottomayor Mui Nobre. (L. M. São Payo, Ed.) Vila Real, Portugal, pp. 86-88.

[8] Sottomayor, D. N. (2000). Os Sottomayor na História de Portugal. (D. N. Sottomayor, Ed.) Lisboa, Portugal, pp. 50-52; Enciclopédia Galega, Casa de Sotomayor.

[9] Gonzalez-Doria, F. (1994). Diccionario Heráldico y Nobiliario de los Reinos de España. Madrid, España: Editorial Bitacora, pp. 840.

[10] Informações retiradas de http://autillodecampos.blogspot.pt/

[11] Gonzalez-Doria, F. (1994), pp. 716. Armas de Reinoso: Em campo de prata, uma cruz florenciada de vermelho; bordadura de quinze peças enxaquetadas de prata e vermelho. Imagens retiradas de http://www.galiciasuroeste.info/varios/benedictinas.htm; http://www.galiciasuroeste.info/varios/calle_do_medio.htm

[12] Pericacho, J. G., Acevedo, F. N., & Salazar, M. V. (1794), pp. 28 verso.

[13] Ibidem, pp. 32.

[14] Aguilera, M. F. (1914). Carlos de Gante. Los viajes del emperador (A. M. Carabias Torres & C. Möller, Edits.). Obtido em 20 de Junho de 2013, de Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes: http://www.cervantesvirtual.com/bib/historia/CarlosV/1523.shtml

[15] Cota González, R. (2008), pp. 72-73.

[16] Conchouso, F. A. (13 de Dezembro de 2012). Una família y dos linajes. Obtido em 14 de Dezembro de 2012, de Colonianos: http://www.cristobal-colon.org/una-familia-dos-linajes/

[17] Pericacho, J. G., Acevedo, F. N., & Salazar, M. V. (1794), pp. 43 verso.

[18] Molinero Merchán, J. A. (2011). Palacio renacentista de Belalcázar: humanismo del tercer Duque de Béjar. Córdoba, España: Servicio de Publicaciones Universidad de Córdoba, pp. 66, 72. D. Martin Rol – cuja pedra de armas em Almorchón denuncia origem Zúñiga (Rol, Zúñiga, Zúñiga e Hurtado de Mendoza) – foi tutor dos filhos do conde de Belalcázar, D. Alfonso de Sotomayor, tendo sido quem concretizou o casamento do primogénito D. Francisco com D. Teresa de Zúñiga, futuros duques de Béjar.

[19] Aguilera, M. F. (1914), http://www.cervantesvirtual.com/bib/historia/CarlosV/1526.shtml; (…) /1527.shtml; (…) /1528.shtml.

Naharro, V. S. & González de Murillo, J. L. (1992) História de Cabeza del Buey. Obtido em 12 de Julho de 2013, de Cabeza del Buey: cuna de Muñoz Torrero: http://alcazaba.unex.es/~ajtorgar/#dieciseis

[20] Pericacho, J. G., Acevedo, F. N., & Salazar, M. V. (1794), pp. 4-19 verso.

[21] Cota González, R. (2008), pp. 117-118.

[22] Excepção feita à linha de Monterrei, não se conhece entre os Zúñiga outro caso de um membro da linhagem se ter passado à Galiza.

[23] Vide, No rasto matricial do conde D. Pedro de Caminha (II), nota 6.

[24] Gándara, F. d. (1662). Armas y Triunfos. Hechos Heróicos de los hijos de Galicia. (P. d. Val, Ed.) Madrid, España: Fac-simile; Editorial Orbigo, A Coruña, pp. 411.

[25] Ibidem, pp. 478-479.

Pedro Madruga, Cavaleiro de São João de Rhodes (I) – o tempo de provar nobreza

Numa quinta dos arredores de Braga, o velho morgado Francisco Bernardo de Sá Sottomayor, regalava-se em juntar os netos ao seu redor, contando-lhes histórias do seu viver de Tenente de Cavalaria em luta contra os franceses, ou de legitimista combatendo os constitucionais do futuro Imperador do Brasil. Por vezes, no auge do relato, evocava a coragem e o sangue guerreiro que lhe corria nas veias, herança do seu antepassado Pedro Madruga! E os miúdos sonhavam, e “guerreavam-se” a brincar, em nome daquelas memórias distantes.

Agostinho Barbosa de Sottomayor, meu bisavô, tinha sete anos quando o Morgado se finou. Nunca esqueceu as aventuras do avô e, já velho, a doença levava-o a “águas” ao Balneário de Mondariz, no sul da Galiza. Ali, voltou a ouvir falar de Madruga, personagem lendária que ainda nos princípios do século XX encantava os bosques da região.

Relatou-o ao filho mais novo, António de Sequeira Sottomayor, e aquele tornou-se o genealogista de serviço da família durante as seis décadas que viveu. Nenhum dos filhos se despediu dele, sem também conhecer os “feitos” do Conde de Caminha… e as “barbáries” também, mas essas, “eram frutos dos tempos de antanho”!
Meu pai, Agostinho Neuparth de Sottomayor, levou-me aos 18 anos ao castelo do Madruga. Nunca alguém da família ali tinha voltado nas centúrias mais recentes. Não era então o monumento que hoje podemos apreciar; estava decrépito e ameaçava ruína interior. Pairava no ar, suspenso do restolho e silvados em seu redor… místico, mas ainda e assim mesmo, imponente.

Há um quarto de século que me dedico à história e genealogia dos Sotomayor, e isso diz bem da impressão que me causou aquela visita em Setembro de 1983. As minhas filhas, já jogaram “à apanhada” no castelo… e começam hoje também, a conhecer o avoengo Pedro Madruga!

Certo dia, Alfonso Philippot publicou La Identidad de Cristobal Cólon, afirmando que o Conde de Caminha e o Almirante do Mar Oceano, Colón, eram a mesma pessoa. Ri-me, mas quis saber do que se falava. Afinal… a tese fazia sentido, mas só parcialmente. Tudo o que se relacionava com a época declinante de Pedro Alvares de Soutomaior apontava, de facto, para uma possível transmutação de um no outro, em 1486. O estudo para clérigo também fazia sentido, tal como a frota dos Sotomayor em Pontevedra, e a sua ligação à cabotagem e à rota mercante do Levante. O parentesco de Frei Esteban de Soutelo, seu tutor, parecia um achado surpreendente, e pleno de consistência… contudo, e embora sem certezas, os documentos antigos referiam quase sempre a mãe de Pedro Madruga, como pertencente à casa de Monterrey, ou seja, como uma Zúñiga, e não uma Soutelo-Colón, de Poio.

Se nas suas últimas vontades, ditadas em 1440, o pai de Madruga omitiu o nome da sua amásia, acreditamos que o terá igualmente escamoteado o mais possível, enquanto viveu. Sabê-lo-iam de facto frei Esteban, o escudeiro Alfonso Garcia, os parentes próximos da incógnita, e o próprio Pedro Alvares que quando passou a dono e senhor de Soutomaior, em 1469, fez acrescentar na entrada do senhorio, o escudo de armas de Zúnigas, de sua pretensa mãe, em vez de Távoras, como se esperaria pelo seu casamento, numa clara atitude do que hoje em dia poderia ser considerado, “marketing publicitário”!

Porque mentia Madruga? Perguntei-o a Philippot, cuja resposta não me satisfez. Desse modo, pouco convencido, passei o Colón-Madruga à gaveta das recordações.
Volvido ano e meio, Rodrigo Cota apresentou a crónica burlesca de Francesillo. Reabri a “gaveta”; voltei a querer saber o que se passava: afinal, um achado de princípios do século XVI, não poderia ser ignorado. A leitura que então fiz, cimentou o que já aceitara em Philippot, mas a questão de base mantinha-se em aberto; também a coloquei a Rodrigo Cota. Respondeu-me como é seu apanágio: claro, sucinto e pleno de lógica. Madruga mentia para apresentar uma linhagem de nobreza!

As grandes ideias, são quase sempre “ovos de Colombo”, e desse modo pude reequacionar toda a teoria de Philippot acerca do nascimento de Pedro Alvares de Soutomaior, para mim até então, o grande “calcanhar de Aquiles” de todo o conceito. Como chave-mestra, a Ordem de São João de Jerusalém, também chamada Ordem do Hospital de São João, ou mais geralmente, de Rodes ou de Malta.

Gaspar Massó no seu Pedro Madruga de Soutomayor, caudillo feudal, afirma na página 25, a propósito da confirmação dos títulos de Visconde de Tui e Mariscal de Baiona, que o Conde de Caminha pertencia àquela Ordem militar e religiosa; o investigador português Luiz de Mello Vaz de São Payo, recentemente falecido e até então colaborador activo na revista “Filermo” – publicação oficial da Assembleia dos Cavaleiros Portugueses da Ordem Soberana de Malta – , instituição a que pertencia, não estranhou a afirmação de Massó, acrescentando até que os referidos títulos lhe tinham sido reconhecidos quando Madruga “já era cavaleiro do Hospital de São João de Jerusalém (Rodes)”, como se pode ler na página 77 de Sottomayor Mui Nobre, editado em 1999.

Sabemos também, graças a Suso Vila Pérez e ao seu estudo sobre A cidade de Tui durante a Baixa Idade Media, vencedor do segundo prémio História Medieval de Galiza e Portugal em 2008, que à referida Ordem militar, pertenciam nos séculos XIV-XV as comendas de Toroño e Mourentán, no bispado de Tui, cujas fronteiras provocaram conflitos jurisdicionais entre a Ordem de São João e o Bispado, prontamente resolvidos em 1460, com vantagem para o Cabido tudense, entre Álvaro Paes de Soutomaior – o encomendeiro irmão de Pedro Alvares – e o comendador Frei Sueiro de Nogueirol.

Galindo Romeo já esclarecera antes, em 1923, com Tuy en la baja Edad Media que Toroño designava “toda a terra do bispado de Tui não submetida ao senhorio episcopal”, e pela Nobleza gallega que José Garcia Oro deu à estampa em 1981, sabíamos que Paio Sorredea de Soutomaior fora Meirinho daqueles territórios até ao seu falecimento que Suso Vila situa em 1425, sucedendo-lhe o genro, Garcia Sarmiento, senhor de Sobroso, futuro alvo político-militar de Pedro Madruga.
O historial da Ordem de São João revela que em cada lugar onde se instalavam, os Hospitalários começavam por fundar um hospital, logo seguido por um hospício, e só depois se preocupavam com a sua defesa ou fortificação. Segundo Adrián Arcaz Pozo, tratando da Implantación y desarrollo territorial de la Orden Militar de San Juan de Jerusalén en Galicia (siglos XII-XV), as rotas da peregrinação jacobea foram o cerne aglutinador das comendas e instituições hospitalárias, “facultando ao peregrino hospedagem e assistência nos seus hospitais e albergarias que se encontravam espalhadas, tanto nas desoladas e ásperas montanhas, como dentro das povoações”. No século XV, existiam pelo menos em Tui, o Hospital de São João (dos Gafos), e o Hospital de Pobres e Peregrinos, o que indicia também a presença continuada na região, dos cavaleiros hospitalários.

É precisamente tratando de um aforamento relativo a esta última instituição que a 15 de Fevereiro de 1458 se testemunha, na Edición e estudo escriptolóxico do Tombo do Hospital dos Pobres de Tui que Xulián Maure Rivas publicou, a presença de Pedro Álvares de Soutomaior no claustro da Catedral tudense, ao lado do alcaide da cidade, notários e outras testemunhas. Chama-se-lhe então “discreto varom”, o que prova a sua actuação enquanto representante do Cabido catedralício. Outros documentos apresentados por Suso Vila Pérez em 2008, provam que entre 1460 e 1463, Pedro Álvares era cónego e pertencia ao Cabido tudense, embora segundo aquele investigador, “Pedro não se interessasse muito pelo Cabido”, fazendo-se representar amiúde pelo criado Pêro de Sevilla, de família imigrante da capital andaluza, onde Colón viverá os anos mais relevantes da sua vida.

Extintos os Templários, reza a história que os Hospitalários lhes herdaram senhorios e comendas, um pouco por todo o mundo conhecido. Em Portugal, assim não foi. Dinis, o Rei Lavrador, “tirou da cartola” a Ordem de Cristo, e os cavaleiros de São João perderam poder até ao reinado do “Africano” Afonso V que os relançou e muito beneficiou. Se acaso ainda o não era enquanto serviu o irmão e o Cabido de Tui, por certo Pedro Madruga cavalgou nas hostes das milícias do hospital, ao cair nas graças daquele rei português, de quem teve sempre o maior apoio e amizade.
Qualquer que tenha sido o percurso do futuro Conde de Caminha entre os anos 50 e 60 do século XV, teve de fazer prova da nobreza “a foro de Espanha” dos seus quatro costados, para poder ingressar como cavaleiro secular na referida Ordem, conforme bem esclarece Fernando Gonzalez-Doria no Diccionario Heráldico y Nobiliário, tratando da “Orden Militar de San Juan de Jerusalén”. Os Soutelo dificilmente cumpriam os requisitos, e os Colón eram essencialmente carpinteiros e mareantes.
Um acordo de linhagem pode bem ter sido o ponto de apoio desta mentira tão fundamental. Álvaro Paes, o último herdeiro legítimo e representante da estirpe dos Alvares de Soutomaior, de Toroño, que senhoreavam, ainda e sempre, o solar de onde brotou a casta, conviveu largo tempo na sua infância e adolescência, com seu parente Alfonso, o filho favorito do Mestre de Alcântara D. Gutierre de Sotomayor. Seriam bem próximas as suas idades, e ambos cresceram na Corte, enquanto donzéis de João II de Castela. É o professor universitário de Córdoba Emílio Cabrera Muñoz quem afirma, na página 180 do seu estudo El Condado de Belalcázar (1444-1518), que durante os anos 50, época do seu estratégico enlace com D. Elvira de Zúñiga, Alfonso se passou a apelidar “Alvares” de Sotomayor, facto que o académico atribuía a uma homenagem de Alfonso ao sogro, D. Álvaro de Zúñiga, Conde de Plasencia.
Outra leitura dos factos, permite entrever uma procura de paridade na legitimidade dos Sotomayor da Extremadura, face aos seus homónimos da Galiza. Como moeda de troca, reforçavam-se os Soutomaior de Tui, conseguindo para o seu bastardo Pedro Álvares, a entrada na Ordem de São João, validada num parentesco próximo, tacitamente aceite entre ambas as linhagens, mas sempre envolto em confusa neblina, como o próprio Vasco de Aponte nos transmite na sua Relación dalgunhas casas e linãxes do reino de Galiza, na página 120 da edição de 2008 de Clodio González Pérez, relatando o que sobre esse assunto se conhecia na época, da seguinte maneira: “(…) Pedro Alvarez de Soutomaior era bastardo natural que o tivera seu pai Fernán Eáns dunha irmã, curmá ou sobriña da condesa de Ribadavia, a que morreu a lanzadas”.
José Garcia Oro na obra supra-citada, revela, por acréscimo, que entre os Soutomaior e os Zúñiga existia uma relação de parentesco muito próximo, documentando nas páginas 95 e 222, respectivamente, que Álvaro de Soutomaior se dirigia a D. Pedro e a D. Juan de Zúñiga, de Monterrey, com o tratamento de “mi Señor tio”. Por maioria de razão, deve concluir-se que da mesma forma consideraria a condessa de Santa Marta (Vasco de Aponte chama-lhe erradamente “de Ribadavia”), D. Teresa, irmã destes. Esta situação prova, por si só, que a Pedro Madruga, irmão de Álvaro, bastava ser filho de Fernánd Yáñez de Soutomayor, para também ser visto na sua época como sobrinho da Condessa de Santa Marta. Não precisava de ser filho bastardo de uma qualquer “Zúñiga”, não documentada nas genealogias, como muito bem anota Salazar y Castro à margem do testamento do primogénito do Madruga, também chamado Álvaro, documento datado de 1491, em que o testador menciona o sepulcro de sua suposta avó, na igreja do Convento de São Domingos de Tui: “(…) de dicho Monesterio de S. Domingo onde está enterrada la dicha D.a Constanza de Zúñiga mi abuela”. Equivocava-se Álvaro, ou enganara-o seu pai, bem como aos outros seus irmãos. No mosteiro em que Pedro Madruga se criou e que tão bem conhecia, está de facto sepultada uma dama, ao lado da arca tumular de um Soutomaior: só que se chamava Inês Álvares e foi mãe do segundo João Fernandes de Soutomaior, Bispo de Tui, conforme opinião de Suso Vila, no livro já citado, páginas 351 a 353.
A propósito ainda da suposta mãe do bastardo Pedro Álvares de Soutomaior, cabe nestas linhas a opinião de Rodrigo Cota, baseado na seguinte passagem do testamento de Fernánd Yáñez: “Yten mando q den ala madre del dicho Pedro mi fizo bastardo por el cargo q della tengo docientos frolines de oro y dela dicha ley y cuño de Aragon.” Baseado na equivalência do florin de ouro em relação ao maravedi, moedas correntes no tempo de Enrique IV, o autor de Colón, Pontevedra, Caminha, estima o valor legado, em 14 000 maravedis, magra quantia para um Soutomaior doar a uma Zúñiga, à laia de dote; “más bien parece la cantidad que se entrega como ayuda a una mujer sin linaje alguno ni gran fortuna”. Tomemos como ponto de comparação que o dote de uma nobre casadoura por essas datas, valia cerca de cinquenta vezes mais, como se deduz do contrato de casamento de Mecia Sarmiento com seu primo Francisco, filho dos Condes de Santa Marta.

Estreita era a relação entre os dois ramos dos Zúñigas: o de Monterrey e o de Plasencia. Após a referida morte prematura da condessa viúva de Santa Marta, em 1470, ficou órfão o pequeno Bernardino, cuja tutela, segundo Garcia Oro (página 105) logo foi atribuída ao Conde de Plasencia D. Álvaro de Zúñiga, sogro, como acima se viu, de Alfonso “Alvares” de Sotomayor. Informa Emílio Cabrera Muñoz no já mencionado estudo sobre o Condado de Belalcázar, páginas 182 a 186, que este Alfonso, por sua vez, também morreu cedo, em 1464, cabendo a tutela dos seus filhos à mulher, Elvira, e ao irmão desta, também chamado Álvaro de Zúñiga, Prior da Ordem de São João do Hospital em Castela.

Admita-se pois, à guisa de conclusão, que a este Álvaro poderá ter ficado a dever o então ainda eclesiástico Pedro Álvares de Soutomaior, a sua ascensão a cavaleiro da Ordem de São João do Hospital, após o necessário processo de admissão, devidamente sancionado pelos testemunhos dos Zúñiga de Monterrey e Plasencia, jurando um nebuloso parentesco capaz de garantir ao futuro Conde de Caminha, nobreza dos quatro costados.