Nota introdutória
Insere-se o presente ensaio no vasto âmbito dos estudos, que desde 1898 pretendem fundamentar a origem galega de Cristóvão Colón, o descobridor do continente americano. Entre os diversos rumos propostos por quase meia centena de investigadores, sobressai hoje em dia o enunciado que o identifica com D. Pedro Álvares de Soutomaior, visconde na galega Tui, e conde na portuguesa Caminha. Leva a proposição cerca de três décadas, e sustenta-se – entre outros – num pilar fundamental: a incerteza da identidade materna deste último. Trata-se de matéria controversa, e da qual se desconhece à data, qualquer resenha de cariz plenário e abrangente. Um vazio eversivo no edifício da opinião. Esta premissa encerra por si só, a razão do exercício que segue.
“Dona nobre” ou “mulher vil”? – Indícios de um testamento
A identidade da mãe de Pedro Madruga mantém-se, ainda hoje, um mistério tão impenetrável, como a busca da origem de Colón, o almirante das índias.
Entre as esparsas citações dos próprios netos, a opinião de um cronista daqueles tempos, e as conclusões extraídas de alguns genealogistas de referência, brotou a inconsistência que hoje invalida a assunção de qualquer certeza, complicando, em absoluto, a tarefa de reconstrução desse capítulo gerador da vida do conde de Caminha.
De todas as conhecidas, a fonte mais antiga que a menciona, é o próprio testamento de quem a tomou por manceba, fosse por consentimento, ou mero recurso ao “direito de pernada” que então se praticava. Em Novembro de 1440, preparando-se para enfrentar o juízo final, Fernan Yañez de Soutomaior aliviava a sua consciência a esse respeito, ditando a seguinte manda: “(…) a Pero de Sotomaior mi fizo bastardo queyo ove de una muger que sabe bien su nombre y quien ella es Alfon Guadardans mi escudero – y el dicho Rodrigo de Deza mi sobrino quele den a el dicho mi fizo bastardo todas las cosas q menester oviere para se crear, y con q dependa em estudio porq es mi voluntad q sea Clerigo. et esto q sea fecho y see faga a bien vista de fray Estevan de Soutelo Mestre em S.ta theolosia y del dicho Alfon Guardardan. Yten mando q den ala madre del dicho Pedro mi fizo bastardo por el cargo q della tengo docientos frolines de oro y dela dicha ley y cuño de Aragon”.[1]
É claro o cuidado do testador em não revelar o nome da amásia. Menos explícitas se tornam as razões que a isso o moveram, deixando no ar a convicção de que aquela ligação amorosa sempre foi oculta, e apenas conhecida de alguns fiéis. De outro modo, careceria de sentido essa discrição revelada nas últimas vontades. Pode atribuir-se igualmente ao testador, a consciência do erro em que incorrera, assim como a necessidade que o mesmo lhe não sobrevivesse face à sociedade de então, conforme sugere Suso Vila na sua análise à “Casa de Soutomaior (1147-1532)”. Contudo, esse mesmo autor destaca, com estranheza, que não seria um comportamento muito habitual, nomeadamente se a mulher em questão, fosse donzela nobre[2]. Conforme explica baseando-se nas leis de “Las Siete Partidas” de Alfonso X, a uma criança nascida sob essas condições, se chamava “natural”, e podia, inclusive, herdar os bens paternos[3].
Essa situação, por si só, justificava a identificação da mãe, em prol do porvir do filho. No caso de Fernan Yañez mais ainda, na hora em que procurava alívio divino para um dos seus pecados terrenos, através do garante do futuro de Pedro, numa carreira eclesiástica. Contudo, à mãe omitiu-lhe o nome e, nas duas vezes que menciona o filho, não se coíbe a adjectivá-lo de “bastardo”, excluindo-o do direito a qualquer herança patrimonial, estabelecendo apenas uma renda com que se possa criar e estudar.
A explicação para estes factos, pode assumir-se à luz do que fica dito: a mãe de Pedro de Soutomaior seria de condição social inferior, situação altamente penalizante para um nobre de elevada hierarquia, e para um filho ilegítimo com futuro apontado à igreja.
A lei que tal regimentava encerrava o título XIV da Partida IV das “Siete Partidas Del ReY Don Alfonso el Sábio”, dedicado a “las otras mugeres que tienen los homes que non son de bendiciones”. Aqui se deixa a cópia integral desse texto particular, extraído da edição madrilena de 1807, cotejada pela Real Academia de la Historia:
“LEY III.
Quáles mugeres son las que non deben rescebir por barraganas los homes nobles et de grant linage.
Illustres personæ son llamadas en latin las personas honradas et de grant guisa, et que son puestas en dignidades, asi como los reyes et los que decenden dellos, et los condes; et otrosi los que decenden dellos, et los otros homes honrados semejantes destos: e testos atales como quier que segunt las leyes pueden rescebir barraganas, tales mugeres hi ha que non deben rescebir, asi como la sierva ó hija de sierva, ni otrosi la que fuese aforrada nin su fija, nin juglaresa nin su fija, nin tabernera, nin regatera nin sus fijas, nin alchueta nin su fija, nin otra persona ninguna de aquellas que son llamadas viles por razon de si mesmas ó por razon de aquellos de que decendieron; ca non serie guisada cosa que la sangre de los nobles homes fuese esparcida nin ayuntada á tan viles mugeres. Et si alguno de los sobredichos ficiese contra esto, si hobiese fijo de tal muger vil, segunt las leyes non serie llamado fijo natural, ante serie llamado espurio, que quiere tanto decir como fornecino: et demas tal fijo como este non debe haber parte en los bienes de su padre, nin es el padre tenudo de criarle si non quisiere”.[4]
“Espúrio” define-se como “bastardo”, e perante o que acima se lê, não se assemelhava à definição de “natural” ou “não legítimo”, facto demonstrável pela leitura do período inicial, da primeira lei, do título seguinte das “Partidas”, onde Alfonso X discorre sobre a noção de “filhos não legítimos”:
“Naturales et non legítimos llamaron los sábios antiguos á los fijos que non nascen de casamiento segunt ley, asi como los que facen en las barraganas, et los fornecinos que nascen de adulterio, ó son fechos en parienta ó en mugeres de órden, et estos non son llamados naturales porque son fechos contra ley et contra razon natural.”[5]
Deslindado este facto, uma outra razão o confirma: a magra quantia legada. É opinião sustentada por Rodrigo Cota González, que “(…) parece la cantidad que se entrega como ayuda a una mujer sin linaje alguno ni gran fortuna”[6]. O autor de “Colón, Pontevedra, Caminha” baseia a afirmação, na equivalência do florim de ouro de Aragão, em relação ao maravedi, moedas correntes no tempo de Enrique IV, estimando aquele valor em 14 000 maravedis. Num ensaio acerca da eventual ligação de Pedro Madruga aos Hospitalários, estabeleci igualmente outra comparação, capaz de aferir a afirmação anterior, referindo então o dote matrimonial de uma nobre casadoura que, à época, podia ascender a um total cinquenta vezes superior![7]
Fica igualmente claro, face à transcrita lei sobre as barregãs adequadas a um homem nobre, que o presente testador optou por tomar a cargo a criação do filho, prescindindo assim da normativa que o desobrigava a tal. Acerca desta matéria, nada mais se pode extrair do referido testamento.
A existência de duas pedras de armas em partes diferentes da fortaleza-solar dos Soutomaior galegos, é a segunda fonte primária a considerar. Situa-se uma no seu muro exterior oeste, assinalando uma poterna; já a outra dá a direita (esquerda do observador) às armas próprias da linhagem, emparelhando com elas sobre o arco de entrada no paço. Exibem elementos heráldicos aparentemente estranhos à linhagem: uma banda, sobreposta por uma cadeia posta em orla. Sem qualquer reserva, trata-se do brasão de armas dos “Zúñiga”, ou “Stúñiga” como em Navarra se conheciam aqueles cavaleiros. O formato do escudo – flancos rectilíneos, ponta acentuada, e duas linhas côncavas a delimitar a parte superior do chefe -, de clara inspiração toledana, esteve em voga na península, ao tempo dos Reis Católicos e de D. Manuel de Portugal, abarcando cerca de quatro décadas (1475-1515 aprox.).
Pensa-se que a fábrica destes exemplares tenha sido ordenada por D. Pedro Álvares de Soutomaior (1468-1485), e poderá datar de princípios dos anos setenta do século XV, quando a fortaleza foi reconstruída, depois da parcial derrocada sofrida às mãos das milicias irmandiñas. Atendendo porém às características artísticas referidas, poderá também ser obra do segundo conde D. Álvaro (1485-1495), ou de seu irmão D. Diego que esteve na posse da fortaleza alguns anos entre 1496 e 1504, por mando dos Reis Católicos após pedido da mãe, a condessa D. Teresa de Távora. Para a maioria dos investigadores, como bem exemplifica a opinião de Jaime Garrido Rodríguez em “Fortalezas de la antigua província de Tuy”, servem ainda hoje de prova material capaz de atestar que, embora não consigam referenciá-la documentalmente, decerto a mãe de Pedro de Soutomaior fora uma Zúñiga[8].
No entanto e face à omissa genealogia coeva, essa presença heráldica nos muros do castelo de Soutomaior pode meramente indiciar – da parte do seu mandante -, uma necessidade assertiva clara: o estabelecimento inequívoco de uma ponte entre a sua ascendência e a linhagem representada. A ser verdadeiro este pressuposto deve concluir-se, sem hesitação, que a origem materna de Pedro Madruga se questionava já, à época do seu regresso à Galiza como herdeiro legítimo da casa que fora do pai e do irmão. Note-se que até então no referido solar, não terá existido qualquer outro signo heráldico representativo de alianças matrimoniais (Aldán/Maldonado, Rodeiro, Mariño, Castro, Noboa, Xuárez/Deza, Biedma/Benavides, Mexia ou Ulloa), senão as faixas enxaquetadas que identificam os de Soutomaior, e só no dealbar do século XIX, como forma demonstrada de posse depois de resolvido o pleito a seu favor pela titularidade do imóvel, os Marqueses de Mós sobrepuseram o seu escudo de armas à entrada principal![9]
Retornando à forma como Fernan Yañez de Soutomaior deixou transparecer no testamento, a baixa condição da manceba, teremos forçosamente que – nesta questão das armas dos Zúñiga – levantar a hipótese de estarmos perante um falso testemunho, eventualmente surgido em 1468, durante todo o processo que conduziu à perfilhação de Pedro pelo irmão legítimo, Álvaro de Soutomaior, para que o bastardo lhe pudesse vir a suceder na casa. Ou posteriormente, na luta judicial por Salvaterra em que os Soutomaior tiveram o apoio dos Zúñiga, ou ainda quando D. Diego aspirava a ser cavaleiro alcantarino e lhe faltava a exigida nobreza pela parte da avó paterna, como adiante se verá.
A terceira fonte primária de relevo para a questão, é o testamento do segundo conde de Caminha, D. Álvaro de Soutomaior, datado de 1491. Nele surge pela primeira vez o suposto nome da mãe de Pedro Álvares de Soutomaior: “(…) de dicho Monesterio de S. Domingo [de Tui] onde está enterrada la dicha D.a Constanza de Zúñiga mi abuela”.[10]Por esta declaração, dir-se-ia afinal tratar-se de uma “dona” nobre, oriunda daquela influente linhagem, informação que condiz perfeitamente, com a inclusão das armas dos Zúñiga no património em que os seus descendentes iriam suceder. Ficam desse modo os investigadores, perante um dilema aparentemente insolúvel: mentia Fernan Yañez de Soutomaior – que nada tinha a perder -, referindo que aquele filho não legítimo era espúrio e não revelando o nome da mãe; ou mentiram os sucessores – que tudo podiam perder, caso a sua origem materna não fosse proveniente da nobreza?
Ou terá razão Suso Vila, ao propor uma versão intermédia de ambos os factos, avançando com a hipótese de Fernan Yañez ter omitido o nome de Constança, em atenção à família daquela que não estaria muito de acordo com a insultuosa relação?[11] Mas se assim fora, haveria necessidade de fustigar o ilegítimo, diminuindo-o à bastardia? Não chegaria nomeá-lo como “natural”, que o seria por direito, evitando da mesma forma, a identificação da mãe?
Pessoalmente e sustentando-me neste último parágrafo, acredito na sinceridade do primeiro testador – procurando desagravar-se às portas da morte -, desconfiando da nobre ascendência apregoada duas décadas mais tarde, porque óbvia em demasia na prosápia das suas intenções.
[1] Archivo Histórico Provincial de Zaragoza. S. IV.92-1/1. 9/11/1440. Leitura feita por Suso Vila e publicada em Vila, S. (2010). A casa de Soutomaior (1147-1532) (1ª ed.). Noia, Galicia: Editorial Toxosoutos, pp. 444-450.
[2] Ibidem, pp. 299.
[3] Ibidem, pp. 297.
[4] Alfonso X. (1807). Las siete partidas del rey don Alfonso el Sabio (Vol. III). Madrid, España: Real Academia de la Historia, pp. 86-87.
[5] Ibidem, pp. 87.
[6] Opinião expressa em correspondência privada com o autor, e devidamente consentida para citação.
[7] Sottomayor, A. P. (19 de Novembro de 2009). Pedro Madruga, Cavaleiro de São João de Rhodes (I). O tempo de provar nobreza. (F. A. Conchouso, Ed.) Obtido em 13 de Abril de 2012, de Colonianos:http://www.cristobal-colon.org/pedro-madruga-cavaleiro-de-são-joao-de-rhodes/
[8] Rodríguez, J. G. (2001). Fortalezas de la antigua província de Tuy (2ª ed.). Pontevedra, Galicia: Diputación Provincial de Pontevedra – Servicio de Publicaciones, pp. 79.
[9] Ibidem, pp. 65.
[10] Real Academia de la Historia. Madrid. Col. Salazar. M-60. Fol. 136. 23/03/1491. O documento foi publicado em Vila, S. (2010), pp. 493-494.
[11] Ibidem, pp. 299.
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