«No soy el primer Almirante de mi familia» (4) – Alfonso Jofre Tenorio, XX Almirante de la Mar (1312-40)

 

Almirantes de la Mar na casa de Tenorio
Almirantes de la Mar na casa de Tenorio

Coincidem os autores desde meados do século XVII, altura em que o padre Felipe de la Gandara na Armas y Triunfos de los hijos de Galicia, afirmou com orgulho regional a naturalidade galega do almirante Jofre Tenorio. Acrescentou ainda que o mesmo viera ao mundo a pouco mais de uma légua da vila de Pontevedra, entre as paredes do castelo de Tenorio, senhorio que então pertencia à sua linhagem. (Gandara, 1662, pp. 278-279)

Dois séculos mais tarde, Fernando Fulgosio na Crónica de la província de Pontevedra, integrada na Crónica General de España publicada em 1867, foi um pouco mais longe, sugerindo inclusive que «(…) Jofre debió de aprender a ser buen marino en la cercana costa y hermosísimas rias, unas á otras inmediatas». (Fulgosio, 1867, pp. 60)

Cronologicamente o nascimento de Alfonso Jofre Tenorio deve situar-se, com poucas reservas, em finais da década de oitenta do século XIII. Deduzimo-lo através da opinião de José Manuel Calderón Ortega, na sua história d’El Almirantazgo de Castilla, na qual considera a data de 1312 para a eventual atribuição do cargo, baseando-se para tal no texto de uma ordenação de 1318, da responsabilidade do então já almirante Alfonso Jofre Tenorio. (Calderón Ortega, 2003, pp. 35)

Os Anales eclesiásticos y seculares de la Muy Noble y Muy Leal Ciudad de Sevilla, de Diego Ortiz de Zúñiga, por seu turno, mencionam pela primeira vez a figura do almirante Tenorio no ano de 1316, comandando a frota de Castilla em incursões anti-muçulmanas ao longo da costa do norte de África. (Ortiz de Zúñiga, 1795, pp. 55)

Assumindo que a nomeação para o referido cargo não terá ocorrido antes da maioridade plena (25 anos), esta cronologia aponta, no mínimo, para os anos entre 1287 e 1291 para aquele nascimento. Aldonza Jofre de Loaisa, a mãe, era natural de Sevilla e filha de um cavaleiro de Aragón, muito beneficiado nos repartimentos posteriores a 1248, ano da conquista daquela cidade andaluz. É admissível pois, que Aldonza casasse com Diego Alfonso Tenorio, filho de um dos muitos cavaleiros galegos que também participaram nessa campanha militar, e por intermédio desses mesmos repartimentos acabaram por se estabelecer na Andalucia.

Esta informação, associada ao facto do castelo de Tenorio ter sido confirmado por Sancho IV de Castilla, em 1290, na casa dos Benavides, seus primos, e do almirante ter vivido grande parte da sua vida no sul andaluz, onde recebeu de Alfonso XI, em 1333, o senhorio da aldeia costeira de Moguer, torna passível que se lance alguma desconfiança acerca da naturalidade galega de Alfonso Jofre Tenorio. Contudo dois documentos deste último soberano, datados de 1328 e 1329, referem Jofre Tenorio como encomendeiro dos mosteiros beneditinos de San Xoán de Poio e San Salvador de Lerez, demonstrando-se deste modo a sua presença e interesses na região de Pontevedra.

Arca tumular da família de Alfonso Jofre Tenorio (Santa Clara de Moguer)
Arca tumular da família de Alfonso Jofre Tenorio (Santa Clara de Moguer)

Políticamente a casa de Tenorio alinhava com Sancho IV, e mais adiante com sua viúva, Maria de Molina, regente durante a menoridade de Fernando IV e Alfonso XI. Provam-no o homicídio do almirante Paio Gomes Charino às mãos de Rui Peres de Tenorio, quando aquele se passou para o bando opositor à regente, conforme abordado neste blog em «No soy el primer Almirante de mi família» (II). Morto Fernando IV em 1312, Maria de Molina foi de novo chamada à regência, acabando por partilhar com os infantes Pedro e Juan, a tutoria do novo rei de Castilla, Alfonso XI, no momento com pouco mais de um ano de idade! Assim se compreende que então fosse de novo escolhido um homem daquela linhagem, para um cargo de confiança e da maior relevância, como o era o de «Almirante de la Mar», cuja base de acção se centrava em Sevilla.

Comandando as acções de mar, há notícias de Jofre Tenorio nas campanhas lançadas pelo infante Pedro contra os mouros de Granada, entre 1315 e 1319, ano em que cessaram as hostilidades por morte na Vega, do seu promotor e do infante Juan, seu tio, que o acompanhava. Maria de Molina ficou então, como única tutora do rei, morrendo dois anos mais tarde. Ainda o seu cadáver não arrefecia, e já três candidatos a tutor se digladiavam, atraídos pelo poder que aquela condição oferecia: Felipe, irmão de Pedro; Juan «el Tuerto», seu primo co-irmão, da casa de Haro; e Juan Manuel, um segundo primo, filho de um irmão de Alfonso X. Posicionou-se o primeiro em Sevilla, o segundo em Zamora, e o último foi chamado a Córdoba.

Castilla viveu então um período conturbado, marcado pelos enfrentamentos destes três partidos, sofrendo a população, obrigada, as agruras e o esforço dos impostos nos respectivos domínios territoriais. Sevilla não foi excepção sob o jugo de Felipe, e a instâncias de um alvará real conseguido pelo senhor de Benavides e Tenorio – seu primo Juan Alfonso, que o infante Pedro nomeara porteiro-maior de León -, pôde Jofre Tenorio tomar o poder naquela cidade, aproveitando uma ausência do infante Felipe.

Mandava o rei que o almirante governasse Sevilla em seu nome, até que o jovem soberano deixasse de estar sob tutela e alí se pudesse deslocar. Devidamente apoiado, Alfonso Jofre Tenorio encabeçou então, no ano de 1325, o levantamento de Sevilla contra Felipe, expulsando da cidade os partidários daquele, entre os quais se encontravam os Guzmán de Sanlúcar de Barrameda, os Ponce de León de Marchena, os Lacerda e o alcaide-maior Fernández de Saavedra!

Meses depois Alfonso XI atingiu a maioridade, passando de imediato a desenvolver acções de pacificação do reino, entre as quais se conta a entrega de Sevilla aos cidadãos e concelho, e a confirmação das suas isenções e privilégios. Para lá se deslocou em 1327, conforme prometera, passando desde logo à organização de nova campanha contra os muçulmanos do reino de Granada.

Calderón Ortega recolhe com sabedoria, a importância do comando de Jofre Tenorio para o sucesso  dassas acções militares, cabendo-lhe o bloqueio das comunicações marítimas entre España e o norte de África. Oportuna por diversas vezes, a intervenção do almirante permitiu que Alfonso XI conseguisse, por fim, montar cerco à praça de Gibraltar em Julho de 1333, no que resultou um vantajoso acordo de tréguas por quatro anos com o sultão de Granada, negociado em Agosto, revisto logo em Outubro e assinado definitivamente em Fez, a 26 de Fevereiro de 1334. (Calderón Ortega, 2003, pp. 36-38)

Santa Clara de Moguer
Santa Clara de Moguer

Como recompensa pelos «(…) buenos servicios, que feicisteis al rey don Fernando, nuestro padre, que Dios perdone, e feicistes e facedes a nos de cada dia (…)» recebeu Alfonso Jofre Tenorio, no rescaldo de Gibraltar, o senhorio da aldeia de Moguer, porto natural de mar no golfo de Cádiz, perto da fronteira portuguesa. Nos anos consequentes, juntamente com Elvira de Velasco, sua mulher, fundaria duas instituições religiosas naquela povoação: o convento do Corpus Christi, e o mosteiro de Santa Clara.

Começavam entretanto as hostilidades do rei português Afonso IV, indignado pela forma como Alfonso XI se dedicava à sua amante – a sevilhana Leonor de Guzmán – ignorando e prejudicando a família legítima nascida do casamento com sua filha Maria de Portugal. O conflito estalou na Extremadura com o cerco a Badajoz, e logo se estendeu à Andalucia. No entender de Calderón Ortega, esta curta guerra que durou entre meados de 1336 e finais de 1339, foi essencialmente naval. Badajoz foi recuperada pelas hostes andaluzas e preparou-se logo uma armada de navios e galeras, capaz para a demanda da costa portuguesa. (Calderón Ortega, 2003, pp. 39)

Terminado o Inverno, trinta galeras portuguesas partiram de Lisboa, rumo ao sul, comandadas pelo almirante Manuel Pessanha, e cerca de quarenta fizeram-se ao mar, desde Sevilla, com Jofre Tenorio à cabeça. Uma violenta tempestade impediu o recontro, regressando ambas as armadas à base, com severas perdas e avarias, obrigando a prolongadas reparações. No começo do verão, voltaram a fazer-se ao mar, consideravelmente reduzidas em cerca de dez unidades cada. Encontraram-se ao largo do cabo de São Vicente, tendo essa batalha naval sido registada pelos cronistas de ambas as coroas, e analisada já no século XX pelo professor Armando Saturnino Monteiro, capitão-de-mar-e-guerra da armada portuguesa.

Segundo revela no seu trabalho de abordagem às Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, este abalizado investigador considera que a vitória castelhana aconteceu, por conta de certa estratégia de combate, já anteriormente utilizada por Jofre Tenorio, com êxito, contra os muçulmanos. Referia-se por certo ao ano de 1328, e à derrota infligida à frota conjunta de vinte e duas galeras preparada pelos sultões de Granada e Marrocos.

«Atacando impetuosamente, as galés portuguesas conseguiram ao fim de pouco tempo render nove das contrárias. Depois houve qualquer coisa que fez inverter o rumo dos acontecimentos. Uma hipótese a considerar é que tenham chegado as naus castelhanas (a armada era composta por galés, e naus para apoio logístico) que tenham começado a abalroar algumas das nossas galés que estavam atracadas às inimigas, afundando umas tantas, e que tenham aferrado outras, lançando-lhes para dentro, do alto dos seus castelos, grande quantidade de pedras, barras de ferro, setas e virotões». (Saturnino Monteiro, 1989, pp.  )

O saldo final revelou-se favorável ao almirante Tenorio: seis galés afundadas e oito capturadas, entre as quais a nave de Pessanha. Dias mais tarde, em clima de apoteose, vencedores e prisioneiros subiam o Guadalquivir em direcção a Sevilla, onde o próprio rei fez questão de os receber e felicitar. Ortiz de Zúñiga com brio pátrio, refere mesmo que o estandarte português pendia do barco de Manuel Pessanha, que assim o trazia arrastando pela água! (Ortiz de Zúñiga, 1795, pp. 92)

Junto de Alfonso XI testemunharam o acontecimento, o senescal de França e o arcebispo de Reims, embaixadores daquele reino, assim como o bispo de Rodes, delegado da Santa Sé, encarregados de procurar a paz entre os reinos ibéricos. Conseguiram-no em Dezembro de 1339, data em que Alfonso XI assinou tréguas, sendo que as últimas acções desta guerra levadas a cabo por Jofre Tenorio, foram o ataque a Castro-Marim, a destruição dos arsenais de Tavira, e o saque às vilas de Faro e Loulé.

Grosso modo, a referida trégua permitiu a Castilla enfrentar nova ameaça muçulmana, que levaria no mar à batalha de Algeciras, e por terra à célebre batalha do Salado, ocorridas respectivamente em Abril e Outubro de 1340. Revelou-se Algeciras a ultima acção de Jofre Tenorio, ingloriamente morto numa acção suicida, enfrentando sessenta galeras e mais de duas centenas e meia de navios diversos, comandando a frota de Castilla, que mais não ascendia do que a trinta e duas galeras e seis naus! A isso o moveu o orgulho de casta, quando por um revés estratégico, se viu confrontado com as dúvidas de Alfonso XI acerca do valor e perícia do seu almirantado.

Batalha naval de Algeciras (4 de Abril de 1340)
Batalha naval de Algeciras (4 de Abril de 1340)

Morreu Alfonso Jofre Tenorio nesse 4 de Abril de 1340. Afundada no mediterrâneo ou presa dos infiéis, igualmente se desfez a frota de Castilla. Fazendo fé em Calderón Ortega, os feitos e sacrifício final do almirante Tenorio, tornaram-no desde então, o «más famoso de los Almirantes de Castilla». (Calderón Ortega, 2003, pp. 40-43)

Cerca de duas décadas mais tarde, a casa de Tenorio, junto com a de Benavides, passava por manda testamentária, do supracitado primo Juan Alfonso, ao sobrinho daquele, Mem Rodrigues de Biedma, homem poderoso, herói no Salado (1340), e derrotado em Guadix contra Aragón (1362), preso no rescaldo de Najera ao lado de Enrique de Trastâmara (1367), e logo vencedor nos campos de Montiel (1369), que marcaram o fim da guerra civil castelhana. Os relevantes serviços prestados ao novo rei Enrique, valeram-lhe a mercê do senhorio de Santisteban del Puerto e a confirmação de todos os restantes estados que já detinha: Biedma, Benavides e Tenorio. Este último ficaria reservado como dote matrimonial da filha Elvira Mendes, casada já depois da sua morte, ocorrida em 1381.

A aliança com a vizinha casa de Soutomaior, somada à ligação desta aos negócios do mar, motivou o casamento de Elvira Mendes com o jovem Pedro Álvares de Soutomaior, decorreriam os anos finais do século XIV. Provam-no o nome e currículo de alguns dos cunhados: Álvaro Perez de Guzmán, Diego Hurtado de Mendoza e Alfonso Enríquez, almirantes de Castilla entre 1391 e 1429. Dos três, Alfonso Philippot escolheu o do meio para compor os seus cinco almirantes. Mas da mesma forma que o Mendoza, se aparentavam o Guzmán e o Enríquez, sendo que cada um deles representava as respectivas linhagens (Mendoza, Guzmán e Enríquez), e nunca a casa de Soutomaior.

Através do casamento daquela Elvira Mendes com Pedro Álvares, avô do conde de Caminha, entrou o senhorio de Tenorio na linhagem dos Soutomaior, tornando-se inclusivamente um dos cenários que posteriormente, mais fama granjearam ao bastardo de Soutomaior. Como facilmente se deduz, Pedro Madruga, enquanto simples habitante da região de Pontevedra, por certo seria conhecedor da história e fama de Alfonso Jofre, cujos feitos foram contados por longo tempo nas rias galegas. Por outro lado, enquanto herdeiro da casa de Tenorio, inevitavelmente teria aquele almirante por seu familiar.

 

«No soy el primer Almirante de mi familia» (3) – Álvaro Paes de Soutomaior, XIII Almirante de la Mar (1300-03)

Almirantes de la Mar na casa de Soutomaior
Almirantes de la Mar na casa de Soutomaior

Não é possível ainda hoje identificar com precisão quem foi este Álvaro Paes de Soutomaior que, entre os anos de 1300 e 1303, durante o reinado de Fernando IV, recebeu o cargo de «Almirante de la Mar».

Os antigos livros de linhagens não mencionam este cargo a ninguém da casa de Soutomaior, nem mesmo a um hipotético filho do almirante Paio Gomes Charino, uma vez que há registos de uma sua filha se chamar Teresa Paes de Soutomaior, e conhecer-se a existência de um Álvaro Paes, irmão desta. Este último tem sido apontado como a melhor hipótese para a sua identificação, mas para tal é necessário que existissem na mesma geração, dois filhos de Charino – um legítimo e o outro não – ambos com os mesmos patronímicos: Álvaro Paes.

Um deles, o ilegítimo, apenas dispensado da sua bastardia por bula papal de 1332, está actualmente bem identificado como sendo o franciscano bispo de Silves (Portugal), entre 1334 e 1352. Como data de referência para o seu nascimento é apontado o ano de 1270, e o local da sua educação primeira, a corte de Sancho IV, de quem Paio Gomes Charino era grande valido. Entre finais do século XIII e princípios do seguinte, Álvaro Paes encontrava-se na Universidade de Bolonha, cursando direito civil e canónico, logo muito longe de poder ser identificado com o referido «Almirante de la Mar».

Por isso se conjectura que Paio Gomes Charino tivesse um outro filho, legítimo, chamado Álvaro Paes, e que usasse do apelido Soutomaior, como a sua irmã Teresa. Cronologicamente a identificação faz sentido; no espaço físico também, mas deverá ser equacionado um facto: Charino fora assassinado a mando da regência, por apoiar a facção que se opunha à coroação de Fernando IV, comprometendo desse modo a restante linhagem, não sendo pacífica a nomeação de um seu filho para o cargo de almirante, ainda em tempo da regente Maria de Molina.

Castelo de Soutomaior (Soutomaior)
Castelo de Soutomaior (Soutomaior)

Recentemente, o historiador tudense Suso Vila, publicou um volumoso estudo inteiramente dedicado à Casa de Soutomaior (1147-1532), onde deixa o alerta para essa identificação, preferindo atribuí-la a Álvaro Paes, senhor de Soutomaior nos reinados de Fernando III e Alfonso X, senhorio em que sucedera a seu pai durante a década de vinte do século XIII. (Vila, 2010, pp. 26)

Seguiu a genealogia tradicional da linhagem, copiada sem questões desde o Conde D. Pedro, mas na qual se verificam algumas incongruências cronológicas, nomeadamente no que se refere aos irmãos daquele Álvaro Paes. Atendendo à opinião do padre Francisco Ruano na sua magna obra acerca da Casa de Cabrera en Córdoba, tanto Mem Paes como Rui Paes de Soutomaior, estiveram na conquista de Córdoba em 1236, acompanhando seus tios Pedro e Suero Mendes. A todos couberam «repartimentos» que viriam a dar origem aos senhorios de «El Carpio» e de «Torre de Mendo Paes». (Ruano, 1779, pp. 162-163)

O chefe da linhagem fora um dos heróis de Navas de Tolosa (1212), Paio Mendes Sorredea, senhor de Soutomaior, «preciado tanto de los Reyes i altos señores, que cada uno le queria consigo» – conforme opinião registada no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Não foi a Córdoba por já ter morrido, uma vez que em 1231, seu filho Álvaro Paes estava já à frente das terras e castelo de Soutomaior, na Galiza, reinando Fernando III «o Santo». Sendo cabeça de linhagem de solar conhecido, Álvaro Paes de Soutomaior não acompanhou aqueles seus irmãos, Mem e Rui Paes, à aventura de Córdoba.

É precisamente a identificação deste Rui Paes que lança alguma confusão na genealogia proposta pelo Conde D. Pedro, pois a ele se deve atribuir a titularidade, em 1205, do castelo de Puebla de Eca, na região de Almazán (Soria), facto documentado e apresentado por Angél Almazán de Gracia na Revista de Soria. No entanto, essa realidade inviabiliza que aquele Rui Paes seja o mesmo, morto na batalha de Paxarón contra D. Diego López de Haro, em 1289, «aonde el iva por Caudillo del Rey Don Sancho de Castilla», conforme atesta o já mencionado Livro de Linhagens. Assim sendo, Rui Paes de Soutomaior teria morrido em combate… com cerca de cem anos! Pela mesma ordem de ideias, e seguindo a Suso Vila, teríamos o seu irmão Álvaro Paes, Almirante de la Mar, a exercer o cargo com perto de cento e vinte anos! (Almazán, 1995, Nº 9, pp. 20; Vila, 2010, pp. 26)

Desse modo fará sentido considerar-se um segundo Rui Paes, filho do anterior, o que explicaria a confusão cronológica estabelecida. A este segundo Rui Paes de Soutomaior deveria atribuir-se a identificação com o adiantado-maior da Galiza, morto em 1289 ao serviço de Sancho IV, provavelmente já sexagenário. Também só dessa forma seria cronologicamente possível, que Teresa Rodrigues, filha daquele, pudesse contrair um segundo matrimónio com Garcia Lasso de la Vega «o Velho», valido do rei Alfonso XI (1312-1350), chanceler, adiantado e justiça-maior de Castilla, falecido em 1326.

Não há hoje forma de estabelecer documentalmente, qual o parentesco deste Garcia, com o almirante Pedro Lasso de la Vega, que ocupou o cargo em 1278 juntamente com Pedro Martinez de Fe. Nessa época, segundo explica M. Jorge Parada Mejuto, co-existiam por vezes dois titulares do cargo: um responsável pela costa atlântica, comandando a frota de barcos «mancos», ou seja os navios à vela – o Almirante de la Mar -; e o outro pela zona mediterrânica, comandando as galeras da Coroa – o Almirante de Sevilla. Pedro Lasso estaria encarregue da primeira, uma vez que a armada que foi tragicamente derrotada em Algeciras no ano de 1279, navegava sob o comando de Martinez de Fe. Cronologicamente podemos aceitar aquele Pedro Lasso como pai ou tio do «velho» Garcia acima mencionado, o que pode representar uma aliança da casa de Soutomaior com um dos primeiros titulares do cargo de «Almirante de la Mar». (Parada Mejuto, 2007, pp. 143-144)

Contudo o Conde D. Pedro apresentou Rui Paes como irmão de Álvaro Paes, apesar de induzido em erro no tempo cronológico. Consequentemente esse parentesco deverá ser tido em conta, levando-nos de novo aos filhos de Paio Gomes Charino, dos quais se conhecem dois com esses nomes. Sendo assim, a necessária existência do segundo Rui Paes torná-lo-ia ou no filho do primeiro do mesmo nome, ou no filho do almirante Charino!

Pelo que fica dito, e não se tratando de nenhum filho de Paio Gomes Charino, apenas há conhecimento de mais dois Álvaro Paes na casa de Soutomaior, cronologicamente compatíveis com a nomeação para «Almirante de la Mar» no dealbar do século XIV: o neto do seu homónimo acima referido, a quem o Conde D. Pedro chama Álvaro Peres; ou o neto do conquistador de Córdoba Mem Paes de Soutomaior.

Castelo de Fornelos (Crecente)
Castelo de Fornelos (Crecente)

Quanto ao primeiro, Suso Vila é claro quando refere com estranheza, a inexistência de documentação coeva onde seja mencionado. Como tal, deveremos cingir-nos à sequência onomástica atribuída pelo Livro de Linhagens, que a um filho de Álvaro corresponde o patronímico «Álvares» e a um filho de Pedro um patronímico «Peres». Atrevemo-nos a contestar esta asserção do Conde D. Pedro, até porque na sucessão de gerações conhecidas na casa de Soutomaior não se repete o patronímico «Peres», antes sim o «Paes», oriundo de Paio Mendes, o das «Navas de Tolosa» e primeiro que usou a identificação da linhagem dos de «Soutomaior». Para mais, o próprio Suso Vila propõe uma documentada Ana Paes de Soutomaior, para irmã daquele. Também outro autor, Alfonso Vázquez Martinez, que publicou no Boletim do Museo Arqueolóxico de Ourense um estudo dedicado ao Castillo de Fornelos (Creciente) – senhorio herdado pela mulher daquele suposto Álvaro Peres – se lhe refere com o patronímico de «Paes». (Vila, 2010, pp. 27-28; Martinez, 1948, vol. IV, pp. 151, 156)

A ser correcta a proposição anterior, teríamos um Álvaro Paes à cabeça das terras e castelos de Soutomaior e Fornelos em finais do século XIII, com cerca de quarenta anos de idade, maduro o suficiente para assumir a responsabilidade do referido cargo. Para mais, um dos seus filhos, Paio Sorredea, viria a casar com Juana, filha de Diego Gomez de Castañeda, Almirante de la Mar no ano de 1311, demonstrando essa aliança, mais uma vez, a forte ligação da casa de Soutomaior aos detentores do almirantado, pois já Pedro e Nuno Diáz de Castañeda, respectivamente pai e tio de Diego, tinham representado o mesmo cargo em simultâneo, por sucessão a Charino, entre 1286 e 1291, conforme estudo acerca do Almirantazgo de Castilla: Historia de una institución conflictiva (1250-1560) da autoria de José Manuel Calderón Ortega.

Esse autor esclarece ainda o importante papel desempenhado por Álvaro Paes de Soutomaior, enquanto regulador da instituição do almirantado, sendo da sua responsabilidade um instrumento legal conhecido como «Ordenamiento de los Guindajes», datado de 4 de Fevereiro de 1302. Segundo Calderón Ortega, naquele texto recolhem-se os direitos económicos pertencentes ao cargo de «Almirante de la Mar», e referentes à carga e descarga de navios nos portos da Andalucia. Seria necessário um homem com bastante experiência nos meandros do comércio marítimo de então, para ordenar com mérito todo esse conjunto legislativo. Esse facto, por si só, prova que já na transição entre os séculos XIII e XIV, a casa de Soutomaior se encontrava ligada aos assuntos do mar, não só pela sua localização estratégica, como pelo domínio que exerciam os seus membros sobre as rias baixas galegas. (Calderón Ortega, 2003, pp. 31-32, 202)

Não cabendo a este senhor de Soutomaior a atribuição do referido cargo, resta apenas uma outra hipótese identificativa: um seu primo segundo, também chamado Álvaro Paes de Soutomaior, filho de outro Paio Mendes e neto daquele Mem Paes, conquistador de Córdoba em 1236, já referido. Ramo segundo da casa de Soutomaior, para além do senhorio da Torre de Mendo Paes naquela cidade andaluz, mantinha na Galiza todo o território vizinho a Soutomaior, entre os rios Otaivén e Verduxo, na faldas da serra do Suido, então referenciado pelo nome de Pedreira, e hoje conhecido por San Martiño de Verducido, no município pontevedrês de A Lama.

Este Álvaro Paes a que nos referimos, cumpre igualmente a cronologia adequada, sendo homem entre os trinta e quarenta anos na transição do século XIII para o XIV. Seu irmão primogénito chamou-se Mem Paes de Soutomaior e foi o progenitor do ramo dos mestres da Ordem de Alcântara, condes de Belalcázar e duques de Bejar. Sua mãe, Inés Martins, deveria pertencer à família Topete, uma vez que um dos seus irmão se chamou Martim Topete. Este por seu turno, deverá ter sido o progenitor da linhagem dos Topete que se radicou em terras alcantarinas, a instâncias dos parentes D. Juan e D. Gutierre de Sotomayor, por quem tiveram comendas da referida ordem.

Revelador será sem dúvida, o facto destes Topete, mesmo fora da Galiza e já radicados na Extremadura de Castilla, continuarem ligados aos assuntos do mar, como o prova a documentação existente acerca de Gonzalo Sánchez Topete, tio do mestre de Alcântara D. Gutierre de Sotomayor, a quem o rei Juan II de Castilla (1406-1454) nomeou «Capitán- General de la Mar». O recurso à análise heráldica, evidencia e sistematiza igualmente esse facto. Senão vejamos: o primeiro brasão que se identifica com a linhagem dos Topete, é claramente enraizado no tronco comum com os Soutomaior – um campo faixado de sete peças, a primeira e a última de negro, a terceira e quinta de prata e as segunda, quarta e sexta axadrezadas de ouro e vermelho de duas ordens. O segundo brasão é posterior e trata-se de uma evolução do primeiro, passando o campo a ser de prata e as três faixas axadrezadas a ser ondadas de azul, óbvia referência ao tema marítimo. Finalmente o acima mencionado capitán-general de la Mar, recebeu do rei Juan II um escudo cortado – no primeiro uma gávea de negro atravessada por cinco setas da mesma cor, e no segundo um ondado de prata e azul.

Necessário se torna concluir, perante o que acima fica dito, que o XIII Almirante de la Mar, Álvaro Paes de Soutomaior, foi oriundo da região de Pontevedra, onde terá nascido na segunda metade do século XIII, filho da casa de Soutomaior, ou das colaterais de Verducido ou de Rianxo.

A relevância social do almirante nessa época, foi analisada por Calderón Ortega e serve para atestar que a memória da existência de tal cargo numa linhagem não seria esquecido, decerto, antes de três ou quatro gerações, senão mais. Baseia-se aquele investigador no texto das Partidas de Alfonso X, para determinar que o cargo de almirante era de grande consideração, gerava importantes ganhos e popularidade. Deveria ser ocupado por um competente marinheiro («sabidor del fecho de la mar e de la tierra»), de nobre estirpe (que sea de buen linaje, para aver vergença»), valente e capaz de exercer a liderança num ambiente difícil e perigoso como é a guerra no mar. (Calderón Ortega, 2003, pp. 193; Alfonso X, 1807, tomo II, pp. 259-260)

É de crer que Álvaro Paes de Soutomaior possa ter morrido na primeira ou segunda década do século XIV. Na segunda metade do século seguinte, quando Pedro Álvares de Soutomaior, futuro conde de Caminha tomou a chefia da casa que fora de seu irmão, tinham decorrido quatro gerações e quase século e meio. Forçosamente se transmitiria ainda, para glória da linhagem, a memória de um Álvaro Paes de antanho, que fora «Almirante de la Mar». A ser Pedro Madruga o almirante Cristóbal Colón, certamente saberia que «não era o primeiro almirante da sua família».

«No soy el primer Almirante de mi familia» (2) – Paio Gomes Charino, V Almirante de la Mar (1284-86)

Arca tumular de Paio Gomes Charino - Séc. XIV (São Francisco de Pontevedra)
Arca tumular de Paio Gomes Charino – Séc. XIV (São Francisco de Pontevedra)

a qui : iace : el mui noble: cavallero: payo guomez : charino: el primeiro : senor : de  rrianjo : que gano : a seuilla siendo : de moros y los preuilejos : desta uilla : ano de : 130(…)

Nasceu algures entre a península galega do Morrazo, o monte Lobeira no Salnés e a vila de Pontevedra, na década de vinte do século XIII, talvez em 1225 conforme opinião de Armando Cotarelo Valledor, o seu mais dedicado biógrafo. Durante a sua vida de cerca de setenta anos, serviu três reis de León e Castilla: Fernando III «o Santo» (1217-1252), Alfonso X «o Sábio» (1252-1284) e Sancho IV «o Bravo» (1284-1295).

Ao serviço do primeiro esteve ainda jovem, em 1248, na conquista de Sevilla, participando na armada comandada por Ramon Bonifaz. Segundo a tradição recolhida na Primera Crónica General de España editada por Ramon Menéndez Pidal em 1906, uma das acções mais decisivas dessa campanha foi a destruição da chamada «Ponte de Triana», uma ponte de barcas que atravessava o rio Guadalquivir unindo as duas margens, e que inviabilizava então o completo e eficaz cerco da cidade pelas tropas cristãs. Para a sua destruição, terão contribuído as acções concertadas de Bonifaz e Charino – se bem que a Crónica não mencione este último -, cada um capitaneando navios dos maiores e mais fortes da frota, que investiram primeiro contra as referidas barcas, abrindo caminho a um ataque em cunha que aniquilou definitivamente a referida passagem entre margens. (Menéndez Pidal, 1906, pp. 760-761)

Natural das rias galegas, com paços familiares em Pontevedra, provavelmente dotados de estaleiro marítimo como assinala M. Jorge Parada Mejuto, participante com muitos outros parentes na frota organizada entre a Cantábria e o Minho para a referida acção de conquista, decerto se deverá concluir, que tanto a sua família, como o próprio Paio Gomes, estariam envolvidos nas actividades e comércio marítimos, quer no transporte quer enquanto armadores de navios. Sugere inclusive aquele autor, que os objectivos das empresas de Paio Gomes Charino ao longo da sua vida, se prenderam essencialmente com a dinamização do comércio entre a Galiza e o Mediterrâneo, só possível através da existência, com carácter permanente, de uma armada na região do estreito de Gibraltar, capaz de anular a presença naquelas paragens de embarcações muçulmanas. (Parada Mejuto, 2007, pp. 127-132)

Durante o reinado do segundo daqueles soberanos, não existem praticamente notícias suas. Presume-se que possa ter participado em acções marítimas da época, como a tomada de Cádiz em 1263 ou o desastre de Algeciras de 1278, em virtude da obrigação de vassalagem a que estava obrigado pelo senhorio da vila realenga de Rianxo, a qual lhe fora outorgada pelo rei «sábio» como forma de controlar o enorme poder que o arcebispo de Santiago detinha na Galiza. Efectivamente ficou a dever-se a Paio Gomes, a construção naquele porto da ria de Arousa, de uma das maiores fortalezas da Galiza, que controlava a foz do rio Ulla, pelo qual se acedia à vila de Padrón, senhorio arcebispal e porta de entrada marítima para Santiago de Compostela. A acção fiscalizadora e tributária desenvolvida desde então em Rianxo, terá sido um dos factores que levou ao crescimento da alternativa de Noia, mais a norte na ria de Muros, que nas primeiras décadas do século XIV podia já ser considerada «o novo porto xacobeo», conforme lhe chama José García Oro, no capítulo que lhe dedica em Galicia en los siglos XIV y XV. (García Oro, 1987, vol. II, pp. 169)

Janelas góticas do que se crê terem sido os pazos de Paio Gomes Charino, em Pontevedra (Museo de Pontevedra)
Janelas góticas do que se crê terem sido os pazos de Paio Gomes Charino, em Pontevedra (Museo de Pontevedra)

A edição do cancioneiro de Charino, feita por Cotarelo Valledor compensa, por outro lado, a falta de documentação para este período da vida do primeiro senhor de Rianxo. Desse modo se podem conhecer vinte e oito cantigas de sua autoria: dezanove de amor, seis de amigo, uma serventês, uma de tensão e uma de escárnio. Segundo o investigador, Paio Gomes trovou durante pelo menos trinta e oito anos, entre 1248 e 1286, essencialmente como passatempo, enquadrando-se na moda cultural da corte do seu tempo. Informa também Parada Mejuto, que o idioma, que o idioma galaico-português estava então muito em voga entre castelhanos, aragoneses, portugueses e franceses, sendo os trovadores galegos muito acarinhados e procurados. (Cotarelo Valledor, 1934; Parada Mejuto, 2007, pp. 135-136)

Alfonso X reinou trinta e dois anos. Na segunda metade desse tempo sofreu forte contestação da nobreza, devido à política imperial que impôs e que foi exaurindo os recursos do reino. Rebelou-se o infante Sancho, filho segundo do monarca, encabeçando um bando de revoltosos, que cresceu até ao quase completo isolamento em que se encontrava o rei «sábio», quando morreu em Sevilla.

Paio Gomes Charino esteve desde a primeira hora com o futuro rei Sancho IV, na luta pela sucessão que aquele manteve com os sobrinhos (infantes de la Cerda), filhos do príncipe Fernando, seu irmão primogénito morto ainda em vida do pai. Esse apoio valeu-lhe a nomeação para «Almirante de la Mar», logo no início do novo reinado, existindo documentação coeva que o coloca no exercício do cargo entre Agosto de 1284 e Setembro de 1286. Cabiam-lhe por inerência das funções, a direcção e o comando das galeras do Mediterrâneo e dos navios «mancos» da costa atlântica, assim chamados por não possuírem remos; apenas velas.

Como única notícia que se conserva da sua actuação enquanto almirante, ficou o conhecido episódio da galé que Paio Charino obrigou os habitantes de Pontevedra a custear e construir para o serviço real. Fê-lo porque a vila pertencia ao arcebispo de Santiago com quem andava inimizado! Ignorou não apenas que D. Rodrigo Gonzalez estava nas boas graças de Sancho IV, como também que desde o reinado do seu antecessor, os vizinhos da vila gozavam de isenção do «imposto de galea», pelo que a tal não eram obrigados. O protesto chegou ao rei que logo ordenou o embargo à construção da nave, a qual acabou por ficar à mercê dos tempos, apodrecendo na taracena contígua ao paço de Charino!

Esse episódio, seguido no mesmo ano pela destituição de Paio Gomes enquanto «Almirante de la Mar», revela que a confiança do soberano de Castilla no senhor de Rianxo recrudesceu entre 1286 e 1291. Nesse ano, contudo, pôde retornar à graça real após ter capturado o adiantado-mor Juan Alfonso Teles, senhor de Alburquerque, cabeça do bando rebelde pró-infantes de la Cerda que tumultuava a Galiza. Na sequência dessa acção, foi nomeado para lhe suceder naquele cargo, que manteve desde 1292 até à morte do rei «bravo», em 1295. (Parada Mejuto, 2007, pp. 137-152)

Seguiu-se novo período de convulsão interna em Castilla, com a decisão de fazer coroar Fernando IV, um menino de nove anos, tutelado pela mãe, a rainha-viúva Maria de Molina, que assumiu a regência na menoridade do filho. Grande parte da nobreza galega apoiou o infante Juan de Castilla, irmão do defunto rei, que chegou a titular-se como soberano de León, Galicia e Sevilla entre 1296 e 1300, passando em seguida à obediência de Fernando IV. Nesse clima de grande instabilidade política, Paio Gomes Charino não foi excepção, aceitando do insurrecto infante a alcaiadaria de Zamora. Num desses anos finais do século XIII, acabou assassinado às mãos de um sobrinho de sua mulher chamado Rui Peres de Tenório, decerto mandatado pela regência!

Maria Giraldes Maldonado, seu mulher, continuou a residir em Pontevedra, atribuindo-se-lhe a construção da arca tumular existente no lado do Evangelho da cabeceira da igreja de San Francisco, datado de 1304 0u 1306, talvez o mais significativo testemunho que perdurou na memória do povo, legando à posteridade a lembrança do almirante-poeta.

Paio Gomes Charino e a sua dona (Alfredo Eiras)
Paio Gomes Charino e a sua dona (Alfredo Eiras)

No século XV, decerto não haveria em Pontevedra quem não frequentasse ofícios em San Francisco, e qualquer dos seus habitantes bem conheceria a efígie fúnebre de Paio Charino, jazendo ao lado de Maria Maldonado. Na frente do monumento, a inscrição que ainda hoje se pode ler (e encabeça o presente ensaio), enquadrava um escudo de armas bem conhecido dos vizinhos da vila: seis faixas axadrezadas de ouro e vermelho representavam então a poderosa casa de Soutomaior. Por esse motivo se conhecia que Paio Gomes Charino fora oriundo de tão ilustrada linhagem, a qual dominava ainda Pontevedra nesses anos de quatrocentos, primeiro com o embaixador Paio Gomes de Soutomaior, depois com o mariscal de Castilla, alcaide das torres arcebispais Suero Gomes, juntamente com seu primo Álvaro Paes, e finalmente, durante a quase totalidade da década de setenta, com Pedro Madruga, conde de Caminha, irmão deste último.

Por outro lado, a memória física da própria vila evocava o já referido episódio da galé, uma vez que se fora enraizando nesse século e meio, o hábito de conhecer a porta noroeste da vila, como «porta da galé». Não fora isso suficiente, perduravam também nesses tempos, bem perto da referida porta, os paços do almirante Charino, integrando parte da muralha da vila, e que então ainda se deviam transmitir por herança dentro da linhagem.

A própria presença na vila, com carácter de «vizinhos», dos supramencionados Paio e Suero Gomes, herdeiros de Rianxo – senhorio de que Charino fora o primeiro detentor conforme se lia na inscrição daquela arca tumular -, ainda integrava no século XV, o almirante, na linhagem dos Soutomaior. Mesmo que se não conhecessem os meandros das genealogias; ainda que de entre os seus filhos e netos um só tivesse usado aquele nome; apesar do conhecimento de que actualmente dispomos não permitir sequer documentar essa ascendência. Um facto prova, contudo, a presença ainda bem viva do antepassado Charino entre os seus descendentes: em 1454, seu bisneto, o embaixador de Enrique III a Tamerlán, Paio Gomes de Soutomaior, legava em testamento, pelo tempo de uma década, aos franciscanos da vila, uma quantia anual pela alma de Paio Gomes Charino.

D. Pedro Álvares de Soutomaior, conde de Caminha, que bem conheceu a realidade dessa Pontevedra de quatrocentos – que dominou -, teria decerto semelhante percepção relativamente a Paio Gomes Charino: pertencia à linhagem dos de Soutomaior; logo fora o primeiro almirante da sua família.

 

«No soy el primer Almirante de mi familia» (1) – Os almirantes da casa de Soutomaior

almir-sout

Meia dúzia de anos foram suficientes para que a glória conseguida por Cristóbal Colón no continente, se transformasse em amargura, desconfiança e revolta, sentimentos trazidos a Castilla em 1499 por alguns dos habitantes de La Española, cujas expectativas de vastas riquezas se viram goradas.

Pertence a Hernando Colón, o benjamim autor da História del Almirante, a descrição presencial desse clima que então grassava na corte e por certo se estenderia também ao reino dos Católicos: «Era de tal manera que estando yo en Granada, cando murió el serenísimo príncipe D. Miguel, más de 50 de ellos como hombres sin verguenza compraron una gran cantidad de uvas y se metieron en el pátio de la Alhambra, dando grandes gritos, diciendo que sus altezas y el Almirante los hacían passar la vida de aquella forma, por la mala paga, y otras deshonestidades é indecências que repetian.

Tanta era su desverguenza, que cuando el Rey Católico salía, le rodeaban todos y le cogían en medio diciendo: Paga, paga, y si acaso yo y mi hermano, que éramos pajes de la serenísima Reina pasábamos por donde estaban, levantaban el grito hasta los cielos diciendo: – Mirad los hijos del Almirante, los mosquitillos de aquel que há hallado tierras de vanidad, y engano para sepulcro y miséria de los hidalgos castellanos, – añadiendo otras muchas injurias por lo cual excusábamos passar por delante de ellos.» (Colón, 1892, vol. II, pp. 122-123)

Existem pelo menos, mais duas versões similares desta última frase acusatória: «Mirad los hijos del Almirante de los mosquitillos, de aquél (…)», numa conferência acerca de Colón y Bobadilla, proferida no ateneo de Madrid por D. Luís Vidart, e «Mirad los hijos del Almirante de los mosquitos, de aquél (…)», na edição da História del Almirante de Luís Arranz Marquez, expressão ressaltada por Consuelo Varela nos seus estudos sobre Cristóbal Colón y la construcción de un mundo nuevo. (Vidart, 1892, pp. 9; Colón, 1984, pp. 260-261; Varela, 2010, pp. 78)

Perdido que foi o texto original, não é hoje possível recuperar a ideia exacta que Hernando Colón quis transmitir. Porém, uma ilação é possível extrair-se entre estas versões: se aos filhos chamavam «mosquitillos», ao pai decerto chamariam depreciativamente «Almirante de los mosquitos» ou «mosquitillos», descarregando nessa praga insalubre – abundante naquelas remotas paragens – todos os factores negativos da colonização de terras tão sem atractivos.

Esclarecer este aparente pormenor é relevante, quando nos move a intenção de comentar uma reacção de Colón a essas notícias vindas da corte, quiçá incluídas nalguma missiva então enviada por Diego a seu pai.

Obviamente que Cristóbal sabia que era criticado e ridicularizado no reino. Disso faz referência numa das cartas que enviou a Juana de la Torre – que fora ama do príncipe Juan de Castilla – mencionada por Hernando Colón e da qual também se perdeu o original, restando apenas a citação incluída na História del Almirante: «No soy el primer Almirante de mi família; pónganme el nombre que quisieren, que al fin David, Rey muy sábio, guardó ovejas y después fué hecho Rey de Jerusalém; y yo soy siervo de aquel mismo Señor que puso á David en este estado.» (Colón, 1892, vol. I, pp. 13)

Como quem diz: tenho linhagem de chefes de mar; mereço o cargo; não me importam insultos pois Deus saberá fazer-me justiça!

Alfonso Philippot Abeledo foi quem primeiro identificou Cristóbal Colón com o magnata galego D. Pedro Álvares de Soutomaior, celebrizado pela alcunha de «Pedro Madruga». Entre as muitas evidências apresentadas, o início desta frase supracitada e imortalizada na História del Almirante, é de impossível contestação quando atribuída àquele senhor de Soutomaior. Baseado no estudo genealógico, Philippot encontrou quatro figuras que verificavam a afirmação «No soy el primer Almirante de mi família», quando aplicada à casa de Soutomaior: Paio Gomes Charino, Álvaro Paes, Alfonso Jofre Tenório e Diego Hurtado de Mendoza.

Pedra de armas de Cristóbal Colón - Séc. XVI (Puerto Rico)
Pedra de armas de Cristóbal Colón – Séc. XVI (Puerto Rico)

Procurando o reforço dos seus argumentos, o investigador foi ainda mais longe, associando-os ao número de âncoras que constituíam parte do escudo de armas atribuído pelos Reis Católicos a D. Cristóbal Colón: em campo de azul, cinco âncoras de ouro deitadas e postas em aspa. A quinta âncora corresponderia ao próprio almirante.

Interpretava desse modo aquele brasonar, atribuindo-lhe características «falantes», expressão que em heráldica se traduz pela associação visual simples, a ideias ou significantes. Por outras palavras: se o campo de azul e o signo da âncora se associavam directamente ao trato de mar – o que se não contesta – já o número de âncoras deveria significar que o portador se assumia como o quinto almirante da sua linhagem. A necessidade de fazer prova desta premissa, levou a que Alfonso Philippot se «excedesse» na busca genealógica, incluindo neste grupo o almirante Diego Hurtado de Mendoza, cuja ascendência na casa de Soutomaior remontava a cinco gerações e claramente se identificava então, apenas com a linhagem dos mendoza, senhores de Hita e Buitrago. (Philippot Abeledo, 1994, pp. 229)

Os Anales eclesiásticos y seculares de la Muy Noble y Muy Leal Ciudad de Sevilla, de Diego Ortiz de Zúñiga, foram a fonte consultada. Nele se dizia que os almirantes «(…) a los blasones de sus armas, añadian un áncora, como lo he visto en algunos sellos de Don Juan Mate de Luna, y otros». Porém esta ideia não vincula que figurassem tantas âncoras, quantos os familiares que haviam militado naquele cargo! (Ortiz de Zúñiga, 1795, tomo II, pp. 298)

Pode mesmo atestar-se que em heráldica, o ordenamento do escudo segundo opções formais estéticas, se sobrepõe bastas vezes à suposta simbólica representada. Por isso as peças móveis – de que a âncora é um excelente exemplo – se apresentam em número variado e sempre assumindo posições fundamentais. Um caso paradigmático do que se afirma, são as variações ao longo do tempo no número de besantes ordenados nas quinas do brasão português, assim como a quantidade de castelos presentes na bordadura do mesmo.

Escudo de armas de D. Fadrique Enríquez de Cabrera, almirante de Castilla - Séc. XVI
Escudo de armas de D. Fadrique Enríquez de Cabrera, almirante de Castilla – Séc. XVI

Desse modo, as cinco âncoras postas em aspa no brasão de Colón, mais não devem ser entendidas do que representando a dignidade de Almirante em que fora investido. Tome-se como exemplo a primeira página do privilégio de confirmação do Almirantado de Granada a D. Fadrique Enríquez de Cabrera, a qual ilustra a capa do estudo dedicado ao Almirantazgo de Castilla, assinado por José Manuel Calderón Ortega. Em rodapé, figura o escudo de armas daquele Fadrique Enríquez, o quarto almirante da sua família (Enríquez de Castilla), ou o sexto se considerarmos igualmente a linhagem da bisavó D. Juana de Mendoza y Ayala, irmã e sobrinha dos almirantes da casa de Mendoza. O referido escudo apresenta-se esquartelado de Enríquez de Castilla, contra Cabreras de Módica, interessando-nos mais particularmente a representação heráldica relativa aos primeiros. (Calderón Ortega, 2003)

Segundo o Diccionario Heraldico y Nobiliario de Fernando Gonzalez-Doria, as armas dos Enríquez ordenavam-se da seguinte forma na sua origem: escudo mantelado; 1º e 2º , em campo vermelho, um castelo de ouro, e no mantel de prata, um leão rampante de vermelho. (Gonzalez-Doria, 1994, pp. 524)

Pedra de armas dos Enríquez, almirantes de Castilla - Séc. XV (Castelo de Torrelobatón)
Pedra de armas dos Enríquez, almirantes de Castilla – Séc. XV (Castelo de Torrelobatón)

Após a elevação de Alfonso Enríquez ao cargo de almirante de Castilla, em 1405, esse ramo da linhagem acrescentou à sua representação heráldica, uma bordadura de prata, carregada indiferentemente de seis ou oito âncoras azuis, travadas de ouro. Registam-no os escudos existentes no castelo de Torrelobatón, que lhes pertenceu (6 âncoras), e verifica-se no aludido exemplo da capa do livro de Calderón Ortega, extraído do privilégio de confirmação do Almirantado de Granada (8 âncoras), provando-se deste modo que o número das mesmas era, de facto, aleatório e sujeito ao regimento heráldico ou às condicionantes do desenho.

Explanado este ponto de vista, deverá ser descartado o nome de Diego Hurtado de Mendoza, dos possíveis titulares do almirantado de Castilla, pertencentes à casa de Soutomaior, resumindo-se então a lista a três nomes, todos naturais de Pontevedra: Paio Gomes Charino, cujo sepulcro apresenta em evidência as armas dos Soutomaior; Álvaro Paes, possível titular da casa na transição do século XIII para o XIV; e Alfonso Jofre Tenório, membro segundo da casa de Tenório, senhorio que pertenceu por sucessão hereditária, desde finais do século XIV, também aos Soutomaior. À luz dos considerandos das linhagens de antanho, só estes três nomes, entre a extensa lista dos trinta e três almirantes de Castilla, podem ser considerados como pertencentes àquela casa, logo pertencentes à «família» do Conde de Caminha, D. Pedro Álvares de Soutomaior.